UM ANO... OUTRO


Nasce o dia, outra vida
nasce um ano sobre o outro.
É assim meu coração
jardim teimoso
a nascer todo dia
de única semente plantada
minguada de aridez,
lavada de tempestade.
Nasce o ano, novo
e o dia sobre o outro.
Gemem as horas
de saudade.
Saramar

Imagem: Zoya Mihunova-Anderson

O MENINO


Depois,
eram uns meninos no berço
e o grito de suas mães
era um sangue lavando pedras
e um matinho quase seco
que água não corria ali.

De inundação, só lágrimas
de mulheres,
e isso não conta, de tanto se ver.
Mesmo na hora de invadir a luz
com a vida,
com uns olhos cegos de quem pariu,
ouve-se o choro da mulher
e vai abaulando, crescendo em água
nos caminhos onde anda
dos olhos da vida, sal e mágoa
pelos meninos, todos
e os seus.

Eram uns meninos num pedaço seco
da terra
e o choro da mãe.

Não fora a estrela insistente
sobre o berço seco do menino,
não fora o olho de abraçar o mundo,
do menino,
ofuscando a estrela e sua luz,
ninguém diria que, naquela aridez
da alma de todo infeliz,
nascia o Menino Jesus.
Saramar

Imagem: roubei daqui

CORSÁRIO


Todo amor invade e aflige.
É corsário com mãos de perfume
e cravo crudelíssimo.
Ora flor, ora gemido,
o amor invade os sonhos,
transtorna os dias,
revira a alma,
ri do tempo,
desconhece circunstâncias.
Rei e menino,
o amor brinca na doce aflição
dos sentidos
e marca e fere.
Assim como não se sabe do seu começo,
nunca termina
tatuado a fogo,
para sempre arde e dói
apesar de sua permanência
breve.
Pena de ave sem pouso,
na alma,
para sempre pesa.
Saramar

DOS CAMINHOS DESFEITOS


Volto às ruas da velha cidade.
Entre cafés e tormentos, nada encontro
nem o eco dos sonhos que sonhei contigo.
Cansaram-se as pedras de esperar.
O tempo atravessou as antigas ruas
segurando minha mão, pedaço trêmulo
de uma ave sem asas e sem abrigo.
Eu, que me quisera Lígia,
pisando flores em caminhos de idílio,
nestas velhas ruas, deixei
o rubro traço dos meus pés feridos
e as marcas de sal nos muros
que souberam do nosso amor
para sempre perdido.
Saramar

VIVO PARA LEMBRAR DE TI


"Eu não te amo porque quero,
se eu pudesse, esqueceria..."
Dolores Duran


Esquecidas de viver,
as palavras vão morrendo
como uma tarde qualquer
de portas trancadas.

A saudade,
fina dor dos intervalos,
vai ferindo sempre
e ri da morte.

eu também morro
(porque te amo)
e vivo, entretanto,
para lembrar de ti.
Saramar

PERTURBAÇÃO


As palavras dormem, tranquilas.
Pensei que fossem minhas.
Entretanto,
ando pela casa em alarido
falo alto
busco uma dor
e soluço em tom de heroína.
Inútil!
As palavras nada sabem de romances
nem de qualquer amor.
Dormem, apenas
enquanto meu ruídos
continuam mudos.
Saramar

FRAGMENTOS

O que não tem certeza
Nem nunca terá!
O que não tem concerto
Nem nunca terá!
O que não tem tamanho...
Chico Buarque
Havia a lua em algum lugar
e os sonhos azuis da lua.

Havia um devaneio,
segredos de amor
até entontecer.

Havia um orvalho tímido
na pele
beijos em névoa, madrugadas.

Havia palavras felizes
maiores que o sol
abrindo as manhãs.

Havia frestas, flores
no meio do dia
e horas de querer.

Eras de outras horas
outro haver
outro... que não passa.
Saramar

FALTA MINHA, DE TI


Eu sei, devia ter avisado
contado da ausência de mim.
Bem podia ter escrito que
mais nada sei dizer do nosso amor.
Se tivesse previsto
pintaria murais mexicanos
ou espanhóis
dizendo do que pisou em minhas flores
e misturou as cores com a terra
o final de tudo, afinal.
Eu devia ter dito que iria faltar
ao encontro com minha dor.
O poeta bem avisou que
a dor também se cansa de tanto doer
porque ofício mais triste não há
este de ferir constantemente
alguém que só sabe amar.

Se voz ainda me restasse,
teria contado que parti.

Mas para quem diria
se não há mais alguém para ouvir?
Saramar

SEM TI


Árida agora, já morro
com a secura dos corações
que se arranham em muros,
destroçando flores enquanto sangro.
Tua ausência, meu cárcere,
negro mar, onde os sonhos morrem,
ondas a se desfazer nas rochas.
Tua ausência, as escarpas
onde rasgo as mãos.

.............................

Agora, rota a alma,
é tarde, é muito tarde.
Saramar

DA DOR DE TODO SILÊNCIO



De tudo me guardei
escondendo de mim tua ausência.
Nem sabes dos dias, das noites
nem sabes de uns versos
em que me aventurei
pequenos e tristes
fingindo deleites.
Nem sabes dos sonhos desfeitos
de tudo que não consigo dizer
nem sabes do nada soando constante
eco dilacerante do teu silêncio
doendo em minhas palavras.

Saramar

PERDIDA EM SONHOS


Quem dera um mundo ideal
onde Flávia brilharia
e suas mãos perfeitas
sonhos desenhariam,
de outras crianças
como sempre Flávia será.

Para sempre adormecida,
levada ao mundo dos sonhos
quem sempre fora princesa.

Não é conto de fadas,
não é história de encantar.
É a maldade dos homens,
é a besta que troca a vida
pela mais indecente riqueza.

Menina, em sonhos, perdida,
precisa de algo além da tristeza.
precisa de ver a justiça.

NOITE, DIA

Preciso de tanto.
a luz do seu olhar
céu
quando abro a janela.

a quentura do riso
de quando o sol vê a flor.

a madrugada e a música
de quem espera na calçada.

Do seu amor
preciso tanto.
Saramar

Imagem: Alfred Gockel

CONVITE


Hoje estou aqui. Venha, por favor, ler um poema.

NÃO É AMOR


Não é amor o que me atormenta
e como poderia, se ando nua
e gélida, abrigando o medo
para me conter, para não dizer:
vem, aquece minha cama
que sem ti, rasgo o corpo
sem enlanguecer?

Não, amor não pode ser
esta noite que me habita,
cegueira da casa, da xícara
entre minhas mãos percebida
depois que queima.

Se fosse amor, tudo que queima e tarda,
não me atravessaria o inverno,
constante como um amante
que no meu sangue se aquece
querendo não ser.

Frio, de tanto frio, não é o amor.
Disseram que é um fogo, uma crepitante rosa
então que desenho é este,
nos meus olhos profundamente rabiscado,
um círculo azul de neve,
um círculo ártico,
a breve sombra de alguém
que me cega e arde?
Saramar

Imagem: Tom Murphy

DAS PEDRAS MARCADAS PELO AMOR


Caminhar com você por estas ruas velhas
sobre as pedras cálidas
de todo amor que guardam
e ainda assim,
abismadas da ternura de nossas mãos
que brincam de pegar longe de nós,
em alguma gente que passa
ou no sonho do pássaro sobre o fio.

Caminhar com você é subir montanhas,
aproximar-se dos deuses
e tocar, com o perfume e o fogo,
a vida que vive em volta do nosso amor.

Saramar

DEPOIS DO MAR


Volto ao mar
meus olhos ao mar
tão longe o mar
meus olhos náufragos
de tanta espera.
o amor no fim do mundo
o amor no fundo
um mundo de nós
correntes cordas velames
profundamente presos
e nós?
Saramar

RECADO



No meu painel de recados,
havia um encontro marcado
para hoje ou amanhã.
Era curto e mal escrito,
como se o que ali fora dito
não soubesse bem por que.
Pensei no abraço que daria,
na arquitetura do dia,
lírios, rios,
lágrimas pelo doce encontrar.

Sem maior razão, o bilhete,
pedaço de um tempo passado,
quando a lua vinha me acordar
com alguma lembrança, um agrado,
trouxe o tempo de volta,
as noites iluminadas
pelas palavras de amar.

Porém, o encontro marcado,
há muito fora trocado pelo escoar
dos meus olhos, cansados de esperar.

Bem quis rasgar o recado,
desfazer cada palavra,
emudecer dentro do peito,
essa saudade sem jeito.
Mas de que serviria
tentar desmanchar os traços
deste amor que já se foi
se meu tonto coração
vive até hoje aos pedaços?

Saramar

Imagem: Albert Koetsier (modificada)

O SENHOR DAS HORAS


"É presente presente e em mim guardado."
Antoniel Campos


És tu, meu amado, o senhor das horas.
Por teu amor, contarei ao vento
as palavras do meu querer.
e o vento as levará ao seu destino,
de amanhecer em tua alma.

Se asas tivesse, mostraria os meus olhos
e neles, o céu que abriste com teu amor,
e a ternura segura com que me abrigas
e me tomas ao peito, tranquilo porto
de seguir te amando, além de todas as horas.

(poderia morrer de amar assim,
mas vivo, cada dia mais,
que me alimentam, tão doces,
tuas palavras...)

Saramar

Imagem: Rejane Guimarães

FRIO


Quem dera o amor não doesse tanto
não precisaria cravar meus olhos
no vento, desfazendo a neve
não aqui dentro
que não há sal que remova
o frio do branco-preto buraco
a que a estrela não resiste.

Sem você, o frio
e o pranto quente.

Saramar

Imagem: Dorothy Wheller

NASCER



No frio da madrugada,
o calor dos seus braços
e eu nasceria.

(semente, ao sol).

Saramar


Imagem: Bouchet

NEGRA CANÇÃO


Não me desespero
procuro guarida nas vozes dos poetas,
pastores de sonhos e suas armadilhas,
mergulhados nas nuvens de toda paixão.

Com a negra canção do pranto,
ao ausente que tanto de mim se despediu,
disperso as palavras frágeis da saudade
até amanhecer.

E saio às ruas molhadas de cada manhã
os olhos molhados, as pedras molhadas.
Tropeçando em mim, só ele vejo,
que nada mais existe
nem as tardes de ensolarar as cortinas
sempre abertas...
só essa ausência.
Tudo mais passou.

Mas ainda sigo a salvo,
não busco pouso nem louvo a dor
nela me desfaço.
Dela me disfarço nas vozes dos poetas.

Saramar

A ALGUÉM

Alguém diz com lentidão:
" Lisboa, sabes..."
Eu sei. É uma rapariga descalça e leve,
um vento súbito e claro nos cabelos..."
Eugénio de Andrade



A alguém, um único alguém, importam todos os versos.
Se, por acaso, desarvorado, outro alguém degusta a ânsia
das minhas palavras espalhadas em arremedo de poemas
e nelas bebe o que me sacia e me abre os céus do amor,
percebe logo, em uma ou outra linha dispersa e morna,
que todas as luas acesas e os beijos estão encantados
do feitiço mais improvável.

Não me culpe, nem queira desvendar meu sentir,
se, porventura, alguma palavra tange a corda do querer
e desperta o desejo de amor semelhante a este meu amor
que não se cala, antes abre-se como portas arrebatadas pelo vento.

Não, não me culpe e nem me peça o que já não me pertence.
O meu amor, insubmisso e alheio ao que lhe nega o existir,
anda perdido pelos caminhos, buscando os rumos
de quem o tomou sem pressentir.
Saramar

Imagem: Fuessli

DO MEU SONHO EM BUSCA DO SOL


"Bruta flor do querer, bruta flor..."
Caetano Veloso

No meu sonho, um nome
voando feito passarinho.
E eu, tonta
de tanto querer.

No meu sonho, uma saudade
loucura de quem ama e arde
pelo sol tão perto
alheio ao que queima.

....

Não quero redenção
o que eu queria era o sonho dele
o desassossego
e a alma dele saltando os muros
em busca do sol,
como eu ando.
Saramar

ALÉM DE TODO TEMOR...


já entrego o peito
e me disponho ao laço
estendo o braço para o nascer da cicatriz
e já entrego a boca ao teu veneno
éden e inferno
e já grito no meu silêncio
e me entrego ao sacrifício
já me arrisco
e canto com tua voz
eva e maçã
já te envolvo em minhas sombras
de muito te sonhar
e já entrego os pés
às tuas amarras
e me esqueço de voltar
à vazia liberdade.
e já me esgarço,
pequena e breve
e já me toma a febre
dos teus lençóis
já morro e sufoco o jorro
do meu tanto querer
e já me entrego,
seminua,
nem tento me esconder
já me entrego
tua.
Saramar

DAS HORAS QUE PASSAM, LEVANDO OS SONHOS


Visitam-me todas as horas,
as antigas, as novas
tomadas de ti
que nem te lembras.
Abrem portas, lêem versos
bebem dos copos só meus.
refazem os ruídos de teu acordar
os olhos ainda sonhando sob o sol.
As horas do amor, já antigas,
passeiam lentamente pelos meus quartos vazios.
Pesam seus passos como o tempo
deixando um aroma frio
cobrindo de pó o meu corpo.
Passam as horas, em seu perene caminhar
deixando cerradas as cortinas.
Vão-se as horas levando meus sonhos,
folhas indo com o vento...

Imagem:Matt Callow (Flick)

TEU NOME


Ainda que me cale
e persiga a sombra de tuas palavras
que não são minhas

ainda que me cale
e procure teu sorriso estático
no porta-retrato

ainda que me cale
e siga pelas ruas do passado
pisando passos já desfeitos

ainda que me cale
e prossiga nessa insensatez
de te amar sem esperança

é teu nome que se agita em minha garganta
suspenso por um fio, um suspiro insano
como se prisioneiro não fosse
sonhando em se libertar.

Imagem: Nicoletta

O POETA E SUA MUSA


Enquanto serena, a musa, em lençóis repousa,
desfaz-se o poeta em letras,
esvaindo em versos de amor,
o amor que sente.
Rasga-se em folhas rabiscadas, o poeta
enquanto a musa descansa e sonha.
Tão pequeno o poeta
e mudas suas palavras, poucas
diante do amor, convertido em silêncio
e versos pálidos.
Repousa a musa e o poeta sangra.
Amanhã, talvez o sol se curve
ao poema mais luminoso do amor que ele sente.
Amanhã, quem sabe, desperte a musa,
mais linda que a manhã
e sinta tremer em seus lábios,
como um beijo,
o verso de amor noturno
do seu poeta louco.
Saramar

AMANHÃ


Amanhã, vou mudar o rumo,
das lágrimas, cansada.
Amanhã, abro a arca,
largo as pedras, ergo os olhos.
Amanhã, desde cedo girassol,
giro o mundo.
Amanhã desfaço o prumo
da certeza.
Não me aprisionará
com o medo, com o certo.
e tonta e tanta
pensarei em borboletas,
Amanhã, vou voar.
Saramar

SILÊNCIO


Da saudade já disse
e da boca nua e fria
de desolação.
Adormeço as palavras na pele
na mudez de todo dia.
O silêncio espanta o sono
guardado no verbo insensato
de quem ama o desvario,
de quem planta o pranto.
Já mais não falo
meu silêncio agoniado
dói nos olhos da noite.
Insone sigo
olhando a dor por dentro.
Saramar

DESUMANIDADE


Em algum lugar morto
jaz uma boneca sem dono
Seus olhos incapazes de chorar
brilham sobre o tapete
em incompreendida solidão,
órfã de eterna infante.
Nunca mais mirará
os olhos de cuidado e deleite
que brilhavam como os seus
no entanto diferentes.
Hoje, todos os olhos são inúteis
e não haverá nenhum balão
de feliz aniversário.
Saramar

Imagem: Vivi Tesche (Flick)

SOLIDÃO


Sozinha
a mesa posta
e o vinho
as flores vesgas
de mirar a janela.
Sozinha com minha esperança
de que o mundo vire
e o mar recolha suas águas
algum milagre pequeno
que desperte
o que não passa, não passou.

só tristeza,
o cristal marcado de batom,
a boca de ninguém.
Solidão.
Saramar

Hoje também estou aqui.

DAS SOMBRAS QUE ELE DEIXOU


Na passagem das horas,
o tempo de frio e sombra
zomba dos medos que guardei
sob o sorriso torto de quem finge.
já nunca amanhece, perdi as auroras.
o pulso da hora, a galope, foge
levando o amor indiferente,
deixando a murcha vida
e pobre e nua.

Mesmo neste desalento,
sob o peso do tempo que tinge o amor
com o branco do esquecimento,
fecha-me a garganta, o coração
em desnoteio,
como se ouvisse a voz de quem partiu
encerrando a noite que deixou.

Breve sonho
engano de quem ficou.

Saramar

Imagem: Kevin Rolly

DO MEU AMOR


O que guardo do meu amor
é alguma longínqua sonata
da cor da noite
os silêncios cálidos
a fúria
o fogo.
Trago, ávida, o beijo
do meu amor
sua voz, as manhãs de miragens,
e o orvalho dele,
abrindo em mim aromas
de flor.

(tudo era sonho e minha agonia).

Saramar

Imagem: Klint

Amantes de outonos ou dos pedidos ao tempo


É de outonos que me disfarço,
vento na manhã,
o tempo violando cortinas,
passos tangidos na premência de ser já primavera
colorindo estes muros mortos de sono.

Nas calçadas inelutáveis dos dias,
ao som dos saltos e do gemido das folhas,
o vento se despedindo do que fora árvore
sonho o destino dos pássaros, alto,
de caminhar entre o vento.
(e chegar, enfim, aos teus braços).

Nos outonos de que me visto,
nunca te esqueço e, como pedes,
peço ao tempo as horas maiores
de voltear em teus braços
frágil fêmea em flerte,
nas mais tontas danças,
o vento voluteando-nos.

Eu peço ao tempo, o maior do dia
a hora mansa e quente
os chãos de amar
em cores de amantes,
semelhantes, todos semelhantes
no querer.
peço ao tempo, o tempo de te encontrar.

Saramar

Imagem: Bouquereau

Também estou aqui.

MÍMICA NOTURNA


No frio das madrugadas nuas,
a ausência de tua carne é sangue
neste solitário cálice.
Inútil é derramar o vinho e te odiar
por só saber de ti,
quão longe estás de minhas mãos
e de tantos carinhos vãos.
Que meios, que modos tenho,
de entrever nossos corpos,
senão em minha entrega banal?
Em minhas mãos, sentimentos mortos,
perfumes de mim.
E os seus?

Ilusão da madrugada
fria e dura.
Carne nua,
carne sua.
Saramar e David

VERSO DE RETORNAR


Em vago dia,
escreverei um verso grande
como uma ilha
e suas árvores se dobrando
na curva dos pássaros.
Em vago dia, para quem amo,
um verso arrebatado dos silêncios,
como uma ilha gestada em fogo,
se faz, de lava.
Aquele que amo, então,
em torno dele navegará
irremediavelmente livre,
pássaro, folha, árvore
deixando em minhas curvas,
o perfume do fogo.
Um dia, um verso bastará.
Saramar

Imagem: Maciej Pokora

DO LEVE FIM


Já se foi, para sempre.
De sua partida, sabem minhas pernas
que abraçam o ar.
De sua partida, sabem os olhos meus
pela cinzenta hora que afasta a aurora.
De sua partida, sabem os espelhos
e a novidade do vazio.
De sua partida sabem já os livros
perdidos dos rabiscos costumeiros.
De sua partida, me disseram os cães,
andando por onde sua imagem
se desvanece.
Da gentileza do seu existir,
a última imagem que terei
é de ir-se assim,
mudo e leve.
Saramar

DE PRELÚDIOS, DE LEMBRANÇAS


O amor vivia trancado no velho papel
em desdenhosas palavras anunciando o fim.
O amor, essa desbotada flor
no meu vestido nunca usado,
já deixara de doer,
cansado.

Um prelúdio, porém havia,
de bachianas notas
melancolicamente pairando
por meu caminho,
a tocar, a tocar, a tocar,
qual asas arranhando-me a alma.

Sangro na calçada,
as lágrimas,
há tanto caladas.
A cortina da saudade,
antes apagada, abre-se na nitidez
do meio-dia.
E, no entanto, em mim, anoitece,
lanho-me em silêncio para disfarçar
a dor.

Quisera ser também de pedra
e deixar ir o tormento
desse amor que julgara morto
e ainda se abre em labirintos
de angústia,
rompendo o que se tornara secreto,
desfazendo o que fizera o tempo.

Saramar

Imagem: Nissan Engel

MULHER


Sou mulher,
do meu mundo,
empunho o remo
e não me tremem as mãos
em nenhum momento,
a não ser que algum quebranto
de dor
ou tormento
de amor
acenda o vento
e aqueça o tempo
em minhas águas.
Navego.
e o leme,
se áspero e belicoso,
é o meu mundo
e não me entrego,
ou me entrego.
quando não nego,
canta o vento,
dos meus gemidos,
invejoso.
Sou mulher e lamento
que ainda é curto
o tempo de não servir.
que antes, por muito tempo,
e ainda hoje,
ando sobre carvões acesos,
enquanto riem dos saltos
e dos uivos queimados
da antiga dor.
No entanto, navego.
e, se qualquer prumo enfrento,
é que me agrada o riste, o lume
da vida em líquido surgimento
e banhar-me neste prazer
é o que intento,
lépida serpente.
Sou mulher e invento
o sabor do veneno
de cada dia,
o alimento meu é o que sacia
quem navega no meu mundo,
pélago, maresia.
Saramar

Imagem: Bernhard

ÀS MULHERES


Era uma vez
uma mulher
que via
um futuro
grandioso
para cada homem
que a tocava.

Um dia
Ela se tocou.
Alice Ruiz

Como minhas palavras são pequenas demais para homenagear todas as mulheres que conheço e aquelas que nunca vi, minhas amigas virtuais que, ainda assim e mais ainda, amo e admiro, a elas deixo estes versos reveladores de Alice Ruiz, expressão do meu amor e meu respeito neste dia que deveria ser construído, minuto a minuto, com amor, respeito e carinhos.

Minha esperança é que chegue o dia em que não mais exista o dia da mulher nem de ninguém e, assim, todo dia será o dia de todo mundo.

SERENATA



Misturam-se as palavras,
imaginando-se em pautas
sem perceber que
este ruído noturno
que as faz trocar os pés,
perdendo a tônica e o sentido
não é, senão
a noite longa a olhar o escuro,
a nota triste da solidão.

Saramar

ILHA


Entre os decrépitos lares,
esquálidos uivos de cães cadavéricos
imitam os donos de línguas mutiladas.
A fome, o pão, o corpo vendido na praça,
“Vai uma dança por um trocado?
Ou a foto por um centavo?”
Há um temor sobre a terra
que impede o enternecimento,
Em seu lugar, o silêncio...
Só os cães ladram
e esquálidos homens, seus semelhantes,
calam.
Há sombras nas ruas
e nos olhos do soldado
enfim, deixado em paz
para morrer pelo desprezo e a solidão

armas que a guerra não usou.
Sísifo gerou ali todos os filhos
que, em vão, labutam,
dos olhos, a sombra salta
e cobre a boca
que se cala.
Há fome nas ruas,
de vida,
quem sabe, um alimento,
um alento,
a pequena felicidade
da mesa farta, antes que, enfim,
a morte leve o leve menino?
Há em cada esquina, um mágico,
em cada alma, um artista.
só assim se pode ser verdadeiro,
só na arte se pode fingir o mundo
e sua magia.
Sussurrada, em todas as vozes,
uma palavra:
liberdade!

Saramar

(a partir de um documentário de Juan Zapata)

INÚTIL SENTIR


Eu prometi esquecer
e um novo amor,
outro jeito de sentir dor,
rima banal, vida banal
de ir te esquecendo aos pedaços.

Desfaço a casa,
rasgo os versos que eram teus.
tudo igual aos de coração desarrumado.

O caderno colorido de escrever, à mão,
versos de amor,
(aquele que trouxeste de Milão)
enrosca-se, de sal molhado, no chão.

Inventei de despir meu corpo
de tuas mãos.
Ah! eu tentei...
Mas, de ti, eu não esqueço.

Esqueço-me, em cacos
pelos cantos,
tela cinzenta de solidão e
desapego.
nem sei mais quem sou
ou o que faço neste retrato.
Eu sabia sorrir?

O que fazer do meu inútil sentir,
se mesmo entre escombros
que caprichosamente construí,
deste amor,
de ti, eu não esqueço?

Saramar

TUA AUSÊNCIA


tua ausência não me deixa.
se me invento livre,
eis que chega, invade o tempo.

tua ausência já longa
é sombra para sempre,
é dor de todo dia.

Se me reinvento triste,
o perfume de tua boca
resvala em mim, lento.

Tua ausência é o tormento
da terra à espera da chuva,
que, ao final, morre,
de tanto que ardia.
Saramar

NOITE, DIA....


É madrugada.
seu nome anda em minha boca
e as estrelas,
atrizes,
fingem não perceber
meu canto triste.

o dia espera,
como se toda solidão
pendesse das cortinas
e pudesse se soltar
ao amanhecer.

Que sabem os astros
do percurso entre a noite e a manhã?
Andam por lá...
das minhas dores, inocentes.
(destas, só eu sei).
Saramar


Imagem: Chagall

VIAGEM


Se fora em Lisboa,
subiria a ladeira com Ricardo Reis
e temeríamos juntos, algum beco
de antigo e parco lampião.

Talvez um café entre silêncios,
cada um com sua saudade
se derramando quente,
em pires indiferente.

Haveria, porém, uma esperança
sob a ansiedade de todo não
a que ele e eu nos acostumamos.

Mas nem Lígia sou e o desamor
é sempre o que é...
irremediável dor
e seu remo de conduzir, o pranto.

Quem sabe no Porto eu seria feliz?
E o meu amor que julgara morto,
saltimbanco, torto, se assim ele fosse,
dobraria a esquina como quem diz:
- “vem, eu esperei tanto!”

Saramar

SOBRE ESQUECER...


sempre esqueço a senha,
a data, o nome da música,
sempre me perco nas ruas,
perco a hora, perco as chaves.
sempre esqueço abertas as portas.

por outro lado,
(como dizem os letrados,
os sabe-tudo,
e os solitários renomados),

nunca te esqueço,
nem do dia em que nascemos juntos.
nunca esqueço dos pecados disfarçados.
nem esqueço dos encontros marcados.

Se perco as chaves, tu sabes,
é que não conheço grades,
senão das minhas mãos nas tuas.

Saramar

CONTEMPLAÇÃO


Agora que o amor desistiu de enfrentar os mares,
roubar beijos alheios e salgar os olhos,
troco os sinais da inútil espera
por estrelas na madrugada.

Não, não me aproveito de metáforas cansadas.

De tanto esperar, perdi o ritmo, os ciclos,
esqueci as marés
e desdenho de quem crê
no perene engano de amar.

Agora, das estrelas,
entendo a luminosa cegueira
e seu longínquo passar,
indiferentes à tola ilusão
dos loucos que vivem de esperar.

Saramar

Imagem: Van Gogh

RÉQUIEM



Na festa vermelha dos sentidos,
verto o sangue do amor, incômoda utopia.

Dobro o corpo e me entrego,
sem remorso,
à féerica farsa dos tristes,
de quem ousou ter esperança.

Sobre a ilusão, enfim desfeita,
de fados,
de flores,
do amante em madrugadas
de íntimo e sereno desfalecer,
pousa a névoa do esquecimento.

Verto o sangue, sangro o seio.
Se pudesse secar o pranto,
seria suave a inelutável dor
pelo meu sonho de amor,
enfim morto.
Saramar

VEM, DOCE AMADO


"Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo".
Chico Buarque


Vem, toca minha mão
e a noite se esvai
em outros tons,
estrelas que caem
aqui do lado
e iluminam como fogo,
o fogo de tuas mãos.

Vem, cobre-me o peito de ais
e um vento perturba a madrugada,
o doce tormento de quem quer
ter em si, o mundo
e a ele se entregar
como me entrego a ti.

Vem, doce amado
e leva-me do profundo sono
à aurora aberta dos teus beijos.

Saramar