ANTES


nem sempre fui triste

antes de você,
eu sabia sorrir
era proa de barco, era dona do mar.

antes de você,
eu era a estrela do meu encenar.

hoje sentada na última fila
falo de mim para mim
e mal ouço meu murmurar.

Saramar


Imagem: Da Vinci

PERDIDA


E nem isso sei,
se passamos,
se passei
das suas mãos para o não
nem isso sei.
um vão e o copo que tomo
vazio
e o trago desfeito
não era um beijo?
nem isso sei.
as fontes várias do som
que exalava das veias
e o vinho?
nem isso sei.
não sei
de rasgos,
de farpas na boca
e seiva e fatos
e uivos.
a paga do tempo
ido, lento
o que sei?
espinho recolhido
que nem mais fere
a pele,
as pernas
minhas pernas onde vão?
e eu sei?
trajeto da alma
que andava em pautas.
acontecia de amanhecer
e quem via?
nem isso sei
nívea ao sol
e sua, toda sua
e agora?
não sei
a lua,
o tempo de se esconder
e morrer à míngua
é agora?
é hora, é nunca?
não sei,
é véspera ou aurora?
rasgo o lençol em sua busca?
não sei
onde está você?
nunca sei.
Saramar

DO LEME DESGOVERNADO


O amor, feito bala perdida
cortou-me o corpo,
tragou-me a vida.
Ainda procuro de onde veio
como se fosse importante saber,
como se o leme desgovernado
do meu coração,
já não me tivesse levado
para o outro lado do mar.
como se meu fôlego já não
houvesse também se perdido
de tanto amar.

Saramar

Imagem: Bernard Cau



Veja outro poema aqui.

SELVA


durmo de lado,
sonho errado,
perco a visita da lua.
toda noite,
a selva é minha agonia,
do que espero
e só vem depois que adormeço.

Saramar

Imagem: Marjanovic Vedran

TUDO E SEMPRE


Da delicadeza do beijo
e do alarde do gozo,
a ausência do corpo.
qual o seu? Onde o meu?
o tudo e o sempre,
ainda que se farte a lua
de espiar o céu
trancado neste quente azul
do nosso abraço,
interminável, lasso.

Saramar

Imagem: Tom Murphy

DEPOIS DO ADEUS


"O que será ser só
Quando outro dia amanhecer?"
(Chico Buarque)


De minhas flores escondidas
deixo-te o perfume
e o sumo de fruta verde
e encarnada.
Deixo-te os pecados nas mãos
e o mapa das dores perdidas
que insistes em desvendar.
Deixo-te o mar dos meus desejos
e o beijo fundo com que
me acendeste a boca e escreveste
a sina de te amar sem fim ou começo.
Deixo-te o avesso de mim
e a tepidez de minhas promessas.
Deixo-te o que restou depois do tempo,
a leve trilha de tuas mãos
e o meu lento enlouquecer
nas festas que inventavas,
bailando, inebriante, em minhas frestas.

Deixo-te, a porta aberta...
Saramar

Imagem: Daeni Pino

O TEMPO



é o tempo severo senhor
do sempre e mesmo destino.
os números que o querem conter,
brinquedo de meninos,
crianças no afã de esconder
que, ao final, olhamos o tempo
sem saber que toda a esperança
está sempre antes do hoje.
e passamos o tempo
imaginando-a no amanhã.
Saramar

Imagem: David FN

QUE NÃO MAIS SEJA, A DOR...


Cantar os mortos,
contar os mortos.

Que minha voz morra também
para sempre e antes deste carpir
antes de numerar a inominável incoerência
:
o homem matar o homem.

Que me caiam os olhos antes de ver
homens mortos pelos homens.

Que se lance aos cães minhas mãos vermelhas
da outra cor da negra tez, aberta aos borbotões.

Que se velem meus ouvidos para sempre
com o lancinar do grito das mulheres.

Que não mais seja, a dor de tanto ver
que cada homem não morre sua morte,
de ver a morte aos quilos, por atacado,
pelo ataque do homem, morto pelo homem.

(lamento pela paz)

Saramar