INÚTIL SENTIR


Eu prometi esquecer
e um novo amor,
outro jeito de sentir dor,
rima banal, vida banal
de ir te esquecendo aos pedaços.

Desfaço a casa,
rasgo os versos que eram teus.
tudo igual aos de coração desarrumado.

O caderno colorido de escrever, à mão,
versos de amor,
(aquele que trouxeste de Milão)
enrosca-se, de sal molhado, no chão.

Inventei de despir meu corpo
de tuas mãos.
Ah! eu tentei...
Mas, de ti, eu não esqueço.

Esqueço-me, em cacos
pelos cantos,
tela cinzenta de solidão e
desapego.
nem sei mais quem sou
ou o que faço neste retrato.
Eu sabia sorrir?

O que fazer do meu inútil sentir,
se mesmo entre escombros
que caprichosamente construí,
deste amor,
de ti, eu não esqueço?

Saramar

TUA AUSÊNCIA


tua ausência não me deixa.
se me invento livre,
eis que chega, invade o tempo.

tua ausência já longa
é sombra para sempre,
é dor de todo dia.

Se me reinvento triste,
o perfume de tua boca
resvala em mim, lento.

Tua ausência é o tormento
da terra à espera da chuva,
que, ao final, morre,
de tanto que ardia.
Saramar

NOITE, DIA....


É madrugada.
seu nome anda em minha boca
e as estrelas,
atrizes,
fingem não perceber
meu canto triste.

o dia espera,
como se toda solidão
pendesse das cortinas
e pudesse se soltar
ao amanhecer.

Que sabem os astros
do percurso entre a noite e a manhã?
Andam por lá...
das minhas dores, inocentes.
(destas, só eu sei).
Saramar


Imagem: Chagall

VIAGEM


Se fora em Lisboa,
subiria a ladeira com Ricardo Reis
e temeríamos juntos, algum beco
de antigo e parco lampião.

Talvez um café entre silêncios,
cada um com sua saudade
se derramando quente,
em pires indiferente.

Haveria, porém, uma esperança
sob a ansiedade de todo não
a que ele e eu nos acostumamos.

Mas nem Lígia sou e o desamor
é sempre o que é...
irremediável dor
e seu remo de conduzir, o pranto.

Quem sabe no Porto eu seria feliz?
E o meu amor que julgara morto,
saltimbanco, torto, se assim ele fosse,
dobraria a esquina como quem diz:
- “vem, eu esperei tanto!”

Saramar

SOBRE ESQUECER...


sempre esqueço a senha,
a data, o nome da música,
sempre me perco nas ruas,
perco a hora, perco as chaves.
sempre esqueço abertas as portas.

por outro lado,
(como dizem os letrados,
os sabe-tudo,
e os solitários renomados),

nunca te esqueço,
nem do dia em que nascemos juntos.
nunca esqueço dos pecados disfarçados.
nem esqueço dos encontros marcados.

Se perco as chaves, tu sabes,
é que não conheço grades,
senão das minhas mãos nas tuas.

Saramar

CONTEMPLAÇÃO


Agora que o amor desistiu de enfrentar os mares,
roubar beijos alheios e salgar os olhos,
troco os sinais da inútil espera
por estrelas na madrugada.

Não, não me aproveito de metáforas cansadas.

De tanto esperar, perdi o ritmo, os ciclos,
esqueci as marés
e desdenho de quem crê
no perene engano de amar.

Agora, das estrelas,
entendo a luminosa cegueira
e seu longínquo passar,
indiferentes à tola ilusão
dos loucos que vivem de esperar.

Saramar

Imagem: Van Gogh