SONHOS


Amo-te tanto e quase
morro em dor e tormento,
saudades e lamento.
Mas por querer- te tanto bem,
trago perfume nos seios e
sonho, em sonhos te beijo.
Se acordo com teu sabor
em minha boca é um dos
milagres com que transformas
minha vida, sem alarde,
sem medo, louco sem pejo.
Se as noites são íntimos
salões de festa, leva-me
em teus braços e vamos.
Contigo, vou-me em danças
e vejo no ínfimo tempo,
que vens traçar arabescos
de fogo e mel em meu corpo.

Saramar

Imagem: Renoir

BÊBADO


Na mesa de bar
deita-se
sobre o copo,
deita o corpo
sorve o copo
corpo morto
no frio copo.
Saramar
Imagem: Manuel Figueira

CLOWN


O clown,
vestido de ilusões,
alimenta-se
dos meus olhos.
Sorve,
sob o móvel céu,
a felicidade
que levei para
colorir o circo.
Saramar

Imagem: Georges Seurat

DISTRAÍDA


Não o vi chegar.
Só o percebi quando
um segredo nasceu
em meu coração.
E também era seu.

Foi o amor que, sorrateiro,
por inteiro me tomou.
O que era deserto, então,
em jardim se tornou.
Saramar


Imagem: Renoir

FOGO


Cozinho o verso
em fogo lento
tostam-se meus olhos.

Saramar

UM BEIJO SÓ


Basta um beijo, um beijo só
e minha alma se abrirá em sorrisos,
em água fresca e música matinal.
Basta um beijo, um beijo só
e recolho meus retalhos perdidos,
refaço-me inteira em seus lábios.
Basta um beijo, um beijo só
e ressurjo em minhas vestes de
deusa para desnudar meus desejos.
Basta um beijo, um beijo só
e busco em baús as fantasias que guardei,
coloridas de amor para lhe entregar.
Saramar

SEM VERSO


risco
linha
letra
vão
verso
verso vão
linha nua
letra vã
rabisco.
Saramar

LÁGRIMAS


Não sei se choro
não sei se rio
sei das marés
dos mundos vazios.
sei das águas
que rolam em pares,
em pedras, em cios
suculentos de dores,
em chuvas contínuas
dos meus olhos baldios.
Saramar

AUSÊNCIA


Sua ausência
salta sobre mim
fantasma.
Saramar

FOME


Vivo em suspenso.
de onde venho?
do que me farto?
por que me faltam
braços?
por onde vôo
se não há barcos
nem nuvens?
de onde vem essa fome?
por que os ventos,
se não há velas e
claridades de mar
não há,
nem estrelas
a guiar
minha sede?
Saramar

Imagem: Jennifer Goldberg

AMOR


Enfim,
você veio
não buscou
diamantes
trouxe o brilho,
antes.
Saramar

Imagem: Annie Griffiths

VÉU


Sultão, escolhe-me em apenas uma
de suas mil e umas noites,
perfuma minha boca com teus beijos.
Vê esses véus, toca-os e, quem sabe,
nalguma aragem, num meneio,
num açoite de mais beijos,
encontra entre eles
a flor, o pêssego,
que em mel banhados,
prendam para sempre nos meus,
os teus desejos.
Saramar

Imagem: Rodin

MANDEI-TE UMA CARTA


Mandei-te uma carta perfumada,
em papel novinho, falando de amor.
Falando dos encontros que não marcamos
e das serenatas que ainda vais compor.
Na carta, falei das noites (tantas),
dos meus lábios que suplicam pelos teus,
das carícias perdidas em gestos sem rumo.
Disse também o que já teu coração pressente,
do amor, orvalho noturno, fantasia de Schubert,
pássaro solto em meu peito, mágico tapete
que me leva a percorrer cordilheiras,
a abrir clareiras em mim e em ti.
Mandei-te uma carta perfumada.
Há mil destinos em tua resposta.

Saramar
Imagem: Françoise Conzalez

FALA-ME DE AMOR


Hoje, fala-me de amor
desmancha meus medos
afasta esses sortilégios
da minha vida sem razão.
fala com flores
fala com versos.

Hoje, fala-me de amor
com grandes gestos
com todos os
beijos incertos
de quem se entrega
e entre carinhos
se perde.

Hoje, fala-me de amor
mesmo mentira
mesmo assim
te entrego
como criança
a vida e os sonhos
vê, preciso de ilusão
e vivo de esperança.

Hoje, fala-me de amor
e da beleza de amar
mesmo à distância
em grande tormento
diga que de me amar
constróis teus dias,
e farei do teu amor
meu alimento.
Saramar

Imagem: Rotari

Mar


um mar aqui e
já o teria cruzado.
Cabral, às avessas
estaria em Portugal.
Saramar

CONSTRUÇÃO


Farta de concordância
desato o verbo e
exijo que as crianças

reconstruam o mundo
com a argamassa
do sonho e do riso.
Refaçam-se as metáforas
povoem os livros de flores
e enxotem as palavras
de ordem.
Acabem com os sujeitos ocultos
da guerra e seus objetos mortíferos.
Ressuscitem a alma das crianças
para chorar outras crianças
mortas, enfim inatingíveis por obuses
e por absurdos cruéis dos
monstros carnívoros,
senhores das frases duras,
das armaduras.
Procurem outros tempos
em que os verbos se conjuguem
no presente e no futuro,
traduzindo-se em esperança.
Apaguem as orações radicais
e em seu lugar deponham as armas.
Destruam as onomatopéias malignas
das balas tracejando em corpos
infantis e colorindo de vermelho
a infância e a juventude.
Desmontem os mísseis,
trocando-os por cartas de amor,
de amizade, de perdão.
Acendam a luz nos olhos
dos velhos, cansados de
procurar a mensagem
dos deuses em sangue e lágrimas.
Basta de antônimos,
queremos igualdade de termos
queremos construir juntos
os versos livres,
os versos límpidos da
PAZ!

Saramar

Imagem: Picasso



SEM PALAVRAS


Ando sem palavras
mas cheia de esperança
ando sem palavras, sem meios
sem nada, mas brinco, criança
em parque de diversão, alada.

Ando sem palavras e preciso
falar do meu amor guardado,
a se revelar em gesto conciso,
em música, em vento, em mar.

Ando sem palavras, então canto
os versos de amor que não são meus
para encantar meu amado, enlevá-lo,
apesar da saudade e deste pranto.
Saramar

Imagem: Wolves

ENTREGA



Tentei compor a canção dos amantes
construindo os acordes da paixão
cuidadosamente se fazendo em
gestos, olhares, pontes.
Tentei compor meu amor em
cotidianos, músicas e cores.
Agora, amor, entrego-lhe
meus sonhos e a razão.
Feliz, entrego-me também,
sem medo ou hesitação,
ao seu mundo, construído
com as palavras de amor
que você me diz.
Saramar
Imagem: Durer

NADA


folha vazia
mundo cheio
de palavras
ao fundo
ao meio
presas
presságios
prólogos.
meu mundo
preso
mudo.
se rumo há,
cala-se..
Se a voz
se solta,
adágio.
Saramar
Imagem: Vermeer

ATRIZ


De tantos disfarces me visto.
De gestos e gritos, vozes, vestidos.
Fujo de relógios e me envolvo
em cortinas de silêncio.
Lanço dados sem números.
Erro o passo e me aprumo.
Apóio-me em frágeis amores,
falsas bengalas.
Dou-me, renego e volto ao ninho.
Desterro-me,
por amor me degredo.
Provoco minha própria história.
Artesã dos meus dias,
invento falas, mas
aceito desenhos e diálogos.
Desmonto possibilidades.
Faço e me desfaço.
Choro de rir,
mergulho em lágrimas.
Lavo-me. Limpa,
volto aos dias claros.
Renasço das águas,
pobre Afrodite
no tablado da vida,
Fecho as cortinas,
até o novo dia.
Saramar

Imagem: Shell Bell