FALTA MINHA, DE TI


Eu sei, devia ter avisado
contado da ausência de mim.
Bem podia ter escrito que
mais nada sei dizer do nosso amor.
Se tivesse previsto
pintaria murais mexicanos
ou espanhóis
dizendo do que pisou em minhas flores
e misturou as cores com a terra
o final de tudo, afinal.
Eu devia ter dito que iria faltar
ao encontro com minha dor.
O poeta bem avisou que
a dor também se cansa de tanto doer
porque ofício mais triste não há
este de ferir constantemente
alguém que só sabe amar.

Se voz ainda me restasse,
teria contado que parti.

Mas para quem diria
se não há mais alguém para ouvir?
Saramar

SEM TI


Árida agora, já morro
com a secura dos corações
que se arranham em muros,
destroçando flores enquanto sangro.
Tua ausência, meu cárcere,
negro mar, onde os sonhos morrem,
ondas a se desfazer nas rochas.
Tua ausência, as escarpas
onde rasgo as mãos.

.............................

Agora, rota a alma,
é tarde, é muito tarde.
Saramar

DA DOR DE TODO SILÊNCIO



De tudo me guardei
escondendo de mim tua ausência.
Nem sabes dos dias, das noites
nem sabes de uns versos
em que me aventurei
pequenos e tristes
fingindo deleites.
Nem sabes dos sonhos desfeitos
de tudo que não consigo dizer
nem sabes do nada soando constante
eco dilacerante do teu silêncio
doendo em minhas palavras.

Saramar

PERDIDA EM SONHOS


Quem dera um mundo ideal
onde Flávia brilharia
e suas mãos perfeitas
sonhos desenhariam,
de outras crianças
como sempre Flávia será.

Para sempre adormecida,
levada ao mundo dos sonhos
quem sempre fora princesa.

Não é conto de fadas,
não é história de encantar.
É a maldade dos homens,
é a besta que troca a vida
pela mais indecente riqueza.

Menina, em sonhos, perdida,
precisa de algo além da tristeza.
precisa de ver a justiça.

NOITE, DIA

Preciso de tanto.
a luz do seu olhar
céu
quando abro a janela.

a quentura do riso
de quando o sol vê a flor.

a madrugada e a música
de quem espera na calçada.

Do seu amor
preciso tanto.
Saramar

Imagem: Alfred Gockel

CONVITE


Hoje estou aqui. Venha, por favor, ler um poema.

NÃO É AMOR


Não é amor o que me atormenta
e como poderia, se ando nua
e gélida, abrigando o medo
para me conter, para não dizer:
vem, aquece minha cama
que sem ti, rasgo o corpo
sem enlanguecer?

Não, amor não pode ser
esta noite que me habita,
cegueira da casa, da xícara
entre minhas mãos percebida
depois que queima.

Se fosse amor, tudo que queima e tarda,
não me atravessaria o inverno,
constante como um amante
que no meu sangue se aquece
querendo não ser.

Frio, de tanto frio, não é o amor.
Disseram que é um fogo, uma crepitante rosa
então que desenho é este,
nos meus olhos profundamente rabiscado,
um círculo azul de neve,
um círculo ártico,
a breve sombra de alguém
que me cega e arde?
Saramar

Imagem: Tom Murphy

DAS PEDRAS MARCADAS PELO AMOR


Caminhar com você por estas ruas velhas
sobre as pedras cálidas
de todo amor que guardam
e ainda assim,
abismadas da ternura de nossas mãos
que brincam de pegar longe de nós,
em alguma gente que passa
ou no sonho do pássaro sobre o fio.

Caminhar com você é subir montanhas,
aproximar-se dos deuses
e tocar, com o perfume e o fogo,
a vida que vive em volta do nosso amor.

Saramar

DEPOIS DO MAR


Volto ao mar
meus olhos ao mar
tão longe o mar
meus olhos náufragos
de tanta espera.
o amor no fim do mundo
o amor no fundo
um mundo de nós
correntes cordas velames
profundamente presos
e nós?
Saramar

RECADO



No meu painel de recados,
havia um encontro marcado
para hoje ou amanhã.
Era curto e mal escrito,
como se o que ali fora dito
não soubesse bem por que.
Pensei no abraço que daria,
na arquitetura do dia,
lírios, rios,
lágrimas pelo doce encontrar.

Sem maior razão, o bilhete,
pedaço de um tempo passado,
quando a lua vinha me acordar
com alguma lembrança, um agrado,
trouxe o tempo de volta,
as noites iluminadas
pelas palavras de amar.

Porém, o encontro marcado,
há muito fora trocado pelo escoar
dos meus olhos, cansados de esperar.

Bem quis rasgar o recado,
desfazer cada palavra,
emudecer dentro do peito,
essa saudade sem jeito.
Mas de que serviria
tentar desmanchar os traços
deste amor que já se foi
se meu tonto coração
vive até hoje aos pedaços?

Saramar

Imagem: Albert Koetsier (modificada)

O SENHOR DAS HORAS


"É presente presente e em mim guardado."
Antoniel Campos


És tu, meu amado, o senhor das horas.
Por teu amor, contarei ao vento
as palavras do meu querer.
e o vento as levará ao seu destino,
de amanhecer em tua alma.

Se asas tivesse, mostraria os meus olhos
e neles, o céu que abriste com teu amor,
e a ternura segura com que me abrigas
e me tomas ao peito, tranquilo porto
de seguir te amando, além de todas as horas.

(poderia morrer de amar assim,
mas vivo, cada dia mais,
que me alimentam, tão doces,
tuas palavras...)

Saramar

Imagem: Rejane Guimarães

FRIO


Quem dera o amor não doesse tanto
não precisaria cravar meus olhos
no vento, desfazendo a neve
não aqui dentro
que não há sal que remova
o frio do branco-preto buraco
a que a estrela não resiste.

Sem você, o frio
e o pranto quente.

Saramar

Imagem: Dorothy Wheller

NASCER



No frio da madrugada,
o calor dos seus braços
e eu nasceria.

(semente, ao sol).

Saramar


Imagem: Bouchet

NEGRA CANÇÃO


Não me desespero
procuro guarida nas vozes dos poetas,
pastores de sonhos e suas armadilhas,
mergulhados nas nuvens de toda paixão.

Com a negra canção do pranto,
ao ausente que tanto de mim se despediu,
disperso as palavras frágeis da saudade
até amanhecer.

E saio às ruas molhadas de cada manhã
os olhos molhados, as pedras molhadas.
Tropeçando em mim, só ele vejo,
que nada mais existe
nem as tardes de ensolarar as cortinas
sempre abertas...
só essa ausência.
Tudo mais passou.

Mas ainda sigo a salvo,
não busco pouso nem louvo a dor
nela me desfaço.
Dela me disfarço nas vozes dos poetas.

Saramar

A ALGUÉM

Alguém diz com lentidão:
" Lisboa, sabes..."
Eu sei. É uma rapariga descalça e leve,
um vento súbito e claro nos cabelos..."
Eugénio de Andrade



A alguém, um único alguém, importam todos os versos.
Se, por acaso, desarvorado, outro alguém degusta a ânsia
das minhas palavras espalhadas em arremedo de poemas
e nelas bebe o que me sacia e me abre os céus do amor,
percebe logo, em uma ou outra linha dispersa e morna,
que todas as luas acesas e os beijos estão encantados
do feitiço mais improvável.

Não me culpe, nem queira desvendar meu sentir,
se, porventura, alguma palavra tange a corda do querer
e desperta o desejo de amor semelhante a este meu amor
que não se cala, antes abre-se como portas arrebatadas pelo vento.

Não, não me culpe e nem me peça o que já não me pertence.
O meu amor, insubmisso e alheio ao que lhe nega o existir,
anda perdido pelos caminhos, buscando os rumos
de quem o tomou sem pressentir.
Saramar

Imagem: Fuessli

DO MEU SONHO EM BUSCA DO SOL


"Bruta flor do querer, bruta flor..."
Caetano Veloso

No meu sonho, um nome
voando feito passarinho.
E eu, tonta
de tanto querer.

No meu sonho, uma saudade
loucura de quem ama e arde
pelo sol tão perto
alheio ao que queima.

....

Não quero redenção
o que eu queria era o sonho dele
o desassossego
e a alma dele saltando os muros
em busca do sol,
como eu ando.
Saramar

ALÉM DE TODO TEMOR...


já entrego o peito
e me disponho ao laço
estendo o braço para o nascer da cicatriz
e já entrego a boca ao teu veneno
éden e inferno
e já grito no meu silêncio
e me entrego ao sacrifício
já me arrisco
e canto com tua voz
eva e maçã
já te envolvo em minhas sombras
de muito te sonhar
e já entrego os pés
às tuas amarras
e me esqueço de voltar
à vazia liberdade.
e já me esgarço,
pequena e breve
e já me toma a febre
dos teus lençóis
já morro e sufoco o jorro
do meu tanto querer
e já me entrego,
seminua,
nem tento me esconder
já me entrego
tua.
Saramar

DAS HORAS QUE PASSAM, LEVANDO OS SONHOS


Visitam-me todas as horas,
as antigas, as novas
tomadas de ti
que nem te lembras.
Abrem portas, lêem versos
bebem dos copos só meus.
refazem os ruídos de teu acordar
os olhos ainda sonhando sob o sol.
As horas do amor, já antigas,
passeiam lentamente pelos meus quartos vazios.
Pesam seus passos como o tempo
deixando um aroma frio
cobrindo de pó o meu corpo.
Passam as horas, em seu perene caminhar
deixando cerradas as cortinas.
Vão-se as horas levando meus sonhos,
folhas indo com o vento...

Imagem:Matt Callow (Flick)

TEU NOME


Ainda que me cale
e persiga a sombra de tuas palavras
que não são minhas

ainda que me cale
e procure teu sorriso estático
no porta-retrato

ainda que me cale
e siga pelas ruas do passado
pisando passos já desfeitos

ainda que me cale
e prossiga nessa insensatez
de te amar sem esperança

é teu nome que se agita em minha garganta
suspenso por um fio, um suspiro insano
como se prisioneiro não fosse
sonhando em se libertar.

Imagem: Nicoletta

O POETA E SUA MUSA


Enquanto serena, a musa, em lençóis repousa,
desfaz-se o poeta em letras,
esvaindo em versos de amor,
o amor que sente.
Rasga-se em folhas rabiscadas, o poeta
enquanto a musa descansa e sonha.
Tão pequeno o poeta
e mudas suas palavras, poucas
diante do amor, convertido em silêncio
e versos pálidos.
Repousa a musa e o poeta sangra.
Amanhã, talvez o sol se curve
ao poema mais luminoso do amor que ele sente.
Amanhã, quem sabe, desperte a musa,
mais linda que a manhã
e sinta tremer em seus lábios,
como um beijo,
o verso de amor noturno
do seu poeta louco.
Saramar