MÍMICA NOTURNA


No frio das madrugadas nuas,
a ausência de tua carne é sangue
neste solitário cálice.
Inútil é derramar o vinho e te odiar
por só saber de ti,
quão longe estás de minhas mãos
e de tantos carinhos vãos.
Que meios, que modos tenho,
de entrever nossos corpos,
senão em minha entrega banal?
Em minhas mãos, sentimentos mortos,
perfumes de mim.
E os seus?

Ilusão da madrugada
fria e dura.
Carne nua,
carne sua.
Saramar e David

VERSO DE RETORNAR


Em vago dia,
escreverei um verso grande
como uma ilha
e suas árvores se dobrando
na curva dos pássaros.
Em vago dia, para quem amo,
um verso arrebatado dos silêncios,
como uma ilha gestada em fogo,
se faz, de lava.
Aquele que amo, então,
em torno dele navegará
irremediavelmente livre,
pássaro, folha, árvore
deixando em minhas curvas,
o perfume do fogo.
Um dia, um verso bastará.
Saramar

Imagem: Maciej Pokora

DO LEVE FIM


Já se foi, para sempre.
De sua partida, sabem minhas pernas
que abraçam o ar.
De sua partida, sabem os olhos meus
pela cinzenta hora que afasta a aurora.
De sua partida, sabem os espelhos
e a novidade do vazio.
De sua partida sabem já os livros
perdidos dos rabiscos costumeiros.
De sua partida, me disseram os cães,
andando por onde sua imagem
se desvanece.
Da gentileza do seu existir,
a última imagem que terei
é de ir-se assim,
mudo e leve.
Saramar

DE PRELÚDIOS, DE LEMBRANÇAS


O amor vivia trancado no velho papel
em desdenhosas palavras anunciando o fim.
O amor, essa desbotada flor
no meu vestido nunca usado,
já deixara de doer,
cansado.

Um prelúdio, porém havia,
de bachianas notas
melancolicamente pairando
por meu caminho,
a tocar, a tocar, a tocar,
qual asas arranhando-me a alma.

Sangro na calçada,
as lágrimas,
há tanto caladas.
A cortina da saudade,
antes apagada, abre-se na nitidez
do meio-dia.
E, no entanto, em mim, anoitece,
lanho-me em silêncio para disfarçar
a dor.

Quisera ser também de pedra
e deixar ir o tormento
desse amor que julgara morto
e ainda se abre em labirintos
de angústia,
rompendo o que se tornara secreto,
desfazendo o que fizera o tempo.

Saramar

Imagem: Nissan Engel

MULHER


Sou mulher,
do meu mundo,
empunho o remo
e não me tremem as mãos
em nenhum momento,
a não ser que algum quebranto
de dor
ou tormento
de amor
acenda o vento
e aqueça o tempo
em minhas águas.
Navego.
e o leme,
se áspero e belicoso,
é o meu mundo
e não me entrego,
ou me entrego.
quando não nego,
canta o vento,
dos meus gemidos,
invejoso.
Sou mulher e lamento
que ainda é curto
o tempo de não servir.
que antes, por muito tempo,
e ainda hoje,
ando sobre carvões acesos,
enquanto riem dos saltos
e dos uivos queimados
da antiga dor.
No entanto, navego.
e, se qualquer prumo enfrento,
é que me agrada o riste, o lume
da vida em líquido surgimento
e banhar-me neste prazer
é o que intento,
lépida serpente.
Sou mulher e invento
o sabor do veneno
de cada dia,
o alimento meu é o que sacia
quem navega no meu mundo,
pélago, maresia.
Saramar

Imagem: Bernhard

ÀS MULHERES


Era uma vez
uma mulher
que via
um futuro
grandioso
para cada homem
que a tocava.

Um dia
Ela se tocou.
Alice Ruiz

Como minhas palavras são pequenas demais para homenagear todas as mulheres que conheço e aquelas que nunca vi, minhas amigas virtuais que, ainda assim e mais ainda, amo e admiro, a elas deixo estes versos reveladores de Alice Ruiz, expressão do meu amor e meu respeito neste dia que deveria ser construído, minuto a minuto, com amor, respeito e carinhos.

Minha esperança é que chegue o dia em que não mais exista o dia da mulher nem de ninguém e, assim, todo dia será o dia de todo mundo.

SERENATA



Misturam-se as palavras,
imaginando-se em pautas
sem perceber que
este ruído noturno
que as faz trocar os pés,
perdendo a tônica e o sentido
não é, senão
a noite longa a olhar o escuro,
a nota triste da solidão.

Saramar

ILHA


Entre os decrépitos lares,
esquálidos uivos de cães cadavéricos
imitam os donos de línguas mutiladas.
A fome, o pão, o corpo vendido na praça,
“Vai uma dança por um trocado?
Ou a foto por um centavo?”
Há um temor sobre a terra
que impede o enternecimento,
Em seu lugar, o silêncio...
Só os cães ladram
e esquálidos homens, seus semelhantes,
calam.
Há sombras nas ruas
e nos olhos do soldado
enfim, deixado em paz
para morrer pelo desprezo e a solidão

armas que a guerra não usou.
Sísifo gerou ali todos os filhos
que, em vão, labutam,
dos olhos, a sombra salta
e cobre a boca
que se cala.
Há fome nas ruas,
de vida,
quem sabe, um alimento,
um alento,
a pequena felicidade
da mesa farta, antes que, enfim,
a morte leve o leve menino?
Há em cada esquina, um mágico,
em cada alma, um artista.
só assim se pode ser verdadeiro,
só na arte se pode fingir o mundo
e sua magia.
Sussurrada, em todas as vozes,
uma palavra:
liberdade!

Saramar

(a partir de um documentário de Juan Zapata)

INÚTIL SENTIR


Eu prometi esquecer
e um novo amor,
outro jeito de sentir dor,
rima banal, vida banal
de ir te esquecendo aos pedaços.

Desfaço a casa,
rasgo os versos que eram teus.
tudo igual aos de coração desarrumado.

O caderno colorido de escrever, à mão,
versos de amor,
(aquele que trouxeste de Milão)
enrosca-se, de sal molhado, no chão.

Inventei de despir meu corpo
de tuas mãos.
Ah! eu tentei...
Mas, de ti, eu não esqueço.

Esqueço-me, em cacos
pelos cantos,
tela cinzenta de solidão e
desapego.
nem sei mais quem sou
ou o que faço neste retrato.
Eu sabia sorrir?

O que fazer do meu inútil sentir,
se mesmo entre escombros
que caprichosamente construí,
deste amor,
de ti, eu não esqueço?

Saramar

TUA AUSÊNCIA


tua ausência não me deixa.
se me invento livre,
eis que chega, invade o tempo.

tua ausência já longa
é sombra para sempre,
é dor de todo dia.

Se me reinvento triste,
o perfume de tua boca
resvala em mim, lento.

Tua ausência é o tormento
da terra à espera da chuva,
que, ao final, morre,
de tanto que ardia.
Saramar

NOITE, DIA....


É madrugada.
seu nome anda em minha boca
e as estrelas,
atrizes,
fingem não perceber
meu canto triste.

o dia espera,
como se toda solidão
pendesse das cortinas
e pudesse se soltar
ao amanhecer.

Que sabem os astros
do percurso entre a noite e a manhã?
Andam por lá...
das minhas dores, inocentes.
(destas, só eu sei).
Saramar


Imagem: Chagall

VIAGEM


Se fora em Lisboa,
subiria a ladeira com Ricardo Reis
e temeríamos juntos, algum beco
de antigo e parco lampião.

Talvez um café entre silêncios,
cada um com sua saudade
se derramando quente,
em pires indiferente.

Haveria, porém, uma esperança
sob a ansiedade de todo não
a que ele e eu nos acostumamos.

Mas nem Lígia sou e o desamor
é sempre o que é...
irremediável dor
e seu remo de conduzir, o pranto.

Quem sabe no Porto eu seria feliz?
E o meu amor que julgara morto,
saltimbanco, torto, se assim ele fosse,
dobraria a esquina como quem diz:
- “vem, eu esperei tanto!”

Saramar

SOBRE ESQUECER...


sempre esqueço a senha,
a data, o nome da música,
sempre me perco nas ruas,
perco a hora, perco as chaves.
sempre esqueço abertas as portas.

por outro lado,
(como dizem os letrados,
os sabe-tudo,
e os solitários renomados),

nunca te esqueço,
nem do dia em que nascemos juntos.
nunca esqueço dos pecados disfarçados.
nem esqueço dos encontros marcados.

Se perco as chaves, tu sabes,
é que não conheço grades,
senão das minhas mãos nas tuas.

Saramar

CONTEMPLAÇÃO


Agora que o amor desistiu de enfrentar os mares,
roubar beijos alheios e salgar os olhos,
troco os sinais da inútil espera
por estrelas na madrugada.

Não, não me aproveito de metáforas cansadas.

De tanto esperar, perdi o ritmo, os ciclos,
esqueci as marés
e desdenho de quem crê
no perene engano de amar.

Agora, das estrelas,
entendo a luminosa cegueira
e seu longínquo passar,
indiferentes à tola ilusão
dos loucos que vivem de esperar.

Saramar

Imagem: Van Gogh

RÉQUIEM



Na festa vermelha dos sentidos,
verto o sangue do amor, incômoda utopia.

Dobro o corpo e me entrego,
sem remorso,
à féerica farsa dos tristes,
de quem ousou ter esperança.

Sobre a ilusão, enfim desfeita,
de fados,
de flores,
do amante em madrugadas
de íntimo e sereno desfalecer,
pousa a névoa do esquecimento.

Verto o sangue, sangro o seio.
Se pudesse secar o pranto,
seria suave a inelutável dor
pelo meu sonho de amor,
enfim morto.
Saramar

VEM, DOCE AMADO


"Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo".
Chico Buarque


Vem, toca minha mão
e a noite se esvai
em outros tons,
estrelas que caem
aqui do lado
e iluminam como fogo,
o fogo de tuas mãos.

Vem, cobre-me o peito de ais
e um vento perturba a madrugada,
o doce tormento de quem quer
ter em si, o mundo
e a ele se entregar
como me entrego a ti.

Vem, doce amado
e leva-me do profundo sono
à aurora aberta dos teus beijos.

Saramar

(DES) LAMENTO


Para que se lamentar?
Toda história de amor vai embora
depois de um tempo,
cansada de ser sempre no mesmo lugar.
Toda história de amor precisa de outro ar,
espinhos novos, outras nuvens que colher.
Trançam no ar enredos iguais e outros
seres encenam seus quadros e vagueiam
nos entreatos, borboletas sem jardim.
Não vamos chorar, não mais
que lágrima só se for de amor
e ainda assim,
escava vales no peito
e reparte a sombra.
Vamos abrir os olhos e passeá-los,
sem molduras, sem medos.
Vamos vaguear entre histórias de amor
e, quem sabe, assim,
um clown de face manchada,
um acendedor de fogos, sem alarme,
sem sapatos, desenquadrado,
impeça nossos olhos de fugir,
mas não de se incendiar,
em luz e fogo de outra história de amor.

Saramar

Imagem: Jacob Lawrence

DO AMOR DE QUE SE QUER MORRER

Amor, amor,
inventor da vida e de todos os tormentos,
permita-me o sereno tombar,
que já não posso mais, qual flor insípida,
lançar-me ao vento dos alheios desejos.
Se não a liberdade, dá-me a surpresa,
o que ainda não posso.
Dá-me a rota da sina de morrer,
se o que queres de mim,
oh! irônico deus,
é esse hei de ser, para sempre imperfeito,
que mesmo o erro há de ter sentido.
Amor, gélido casulo, que me recusa as asas,
solta-me de ti,
anoitece-te,
mata-me.
Saramar


Imagem: Greg Christman

AUSÊNCIA


É certo,
entreguei-me à loucura
e ainda busquei a razão,
como se razão houvesse
para o desamparo dos meus olhos
sempre vazios,
a ausência e os vastos horizontes
vazios.

É certo que tentei
refazer meus caminhos,
fechando os olhos,
a janela de mirar o calor do dia,
a imagem,
sua vinda, enfim.

No entanto, havia sempre,
(estranha tortura)
sua ternura dentro meus olhos,
meus olhos que sabem

como está longe de mim.
Saramar

Imagem: Cartro Pedra

PARALELAS


Imaginaste o som do sol
em canto, se cantar soubesse.
Imaginaste sombras de sementes
e o amor, se assim nascesse,
flor, fruto de esperança ou sangue.

Imaginaste nascimento e morte
em orgasmos ou risos, possíveis.

Imaginaste tu e eu
na dança desmemoriada dos felizes.

Imaginei te amar somente
e o vão das horas, o chão.
Nenhum desvario da carne,
ou corte de suicídio.
Só calma.

Quase nos tocamos,
no cansaço de ser o que somos.

Depois de tudo passado,
penso no que não te mostrei,
o denso mar que há em mim
e que poderia ter mostrado.

Saramar

Imagem: Douglas