A ALGUÉM

Alguém diz com lentidão:
" Lisboa, sabes..."
Eu sei. É uma rapariga descalça e leve,
um vento súbito e claro nos cabelos..."
Eugénio de Andrade



A alguém, um único alguém, importam todos os versos.
Se, por acaso, desarvorado, outro alguém degusta a ânsia
das minhas palavras espalhadas em arremedo de poemas
e nelas bebe o que me sacia e me abre os céus do amor,
percebe logo, em uma ou outra linha dispersa e morna,
que todas as luas acesas e os beijos estão encantados
do feitiço mais improvável.

Não me culpe, nem queira desvendar meu sentir,
se, porventura, alguma palavra tange a corda do querer
e desperta o desejo de amor semelhante a este meu amor
que não se cala, antes abre-se como portas arrebatadas pelo vento.

Não, não me culpe e nem me peça o que já não me pertence.
O meu amor, insubmisso e alheio ao que lhe nega o existir,
anda perdido pelos caminhos, buscando os rumos
de quem o tomou sem pressentir.
Saramar

Imagem: Fuessli

DO MEU SONHO EM BUSCA DO SOL


"Bruta flor do querer, bruta flor..."
Caetano Veloso

No meu sonho, um nome
voando feito passarinho.
E eu, tonta
de tanto querer.

No meu sonho, uma saudade
loucura de quem ama e arde
pelo sol tão perto
alheio ao que queima.

....

Não quero redenção
o que eu queria era o sonho dele
o desassossego
e a alma dele saltando os muros
em busca do sol,
como eu ando.
Saramar

ALÉM DE TODO TEMOR...


já entrego o peito
e me disponho ao laço
estendo o braço para o nascer da cicatriz
e já entrego a boca ao teu veneno
éden e inferno
e já grito no meu silêncio
e me entrego ao sacrifício
já me arrisco
e canto com tua voz
eva e maçã
já te envolvo em minhas sombras
de muito te sonhar
e já entrego os pés
às tuas amarras
e me esqueço de voltar
à vazia liberdade.
e já me esgarço,
pequena e breve
e já me toma a febre
dos teus lençóis
já morro e sufoco o jorro
do meu tanto querer
e já me entrego,
seminua,
nem tento me esconder
já me entrego
tua.
Saramar

DAS HORAS QUE PASSAM, LEVANDO OS SONHOS


Visitam-me todas as horas,
as antigas, as novas
tomadas de ti
que nem te lembras.
Abrem portas, lêem versos
bebem dos copos só meus.
refazem os ruídos de teu acordar
os olhos ainda sonhando sob o sol.
As horas do amor, já antigas,
passeiam lentamente pelos meus quartos vazios.
Pesam seus passos como o tempo
deixando um aroma frio
cobrindo de pó o meu corpo.
Passam as horas, em seu perene caminhar
deixando cerradas as cortinas.
Vão-se as horas levando meus sonhos,
folhas indo com o vento...

Imagem:Matt Callow (Flick)

TEU NOME


Ainda que me cale
e persiga a sombra de tuas palavras
que não são minhas

ainda que me cale
e procure teu sorriso estático
no porta-retrato

ainda que me cale
e siga pelas ruas do passado
pisando passos já desfeitos

ainda que me cale
e prossiga nessa insensatez
de te amar sem esperança

é teu nome que se agita em minha garganta
suspenso por um fio, um suspiro insano
como se prisioneiro não fosse
sonhando em se libertar.

Imagem: Nicoletta

O POETA E SUA MUSA


Enquanto serena, a musa, em lençóis repousa,
desfaz-se o poeta em letras,
esvaindo em versos de amor,
o amor que sente.
Rasga-se em folhas rabiscadas, o poeta
enquanto a musa descansa e sonha.
Tão pequeno o poeta
e mudas suas palavras, poucas
diante do amor, convertido em silêncio
e versos pálidos.
Repousa a musa e o poeta sangra.
Amanhã, talvez o sol se curve
ao poema mais luminoso do amor que ele sente.
Amanhã, quem sabe, desperte a musa,
mais linda que a manhã
e sinta tremer em seus lábios,
como um beijo,
o verso de amor noturno
do seu poeta louco.
Saramar