FELIZ NATAL


Feliz natal
aos poetas encolhidos em calçadas da noite
aos meninos que catam a felicidade
nas felizes calçadas verde-vermelhas
aos velhos do tanto frio da solidão
às Clarices, Florbelas e Adelias,
às mulheres vazias de luz,
portadoras de secretas dores
e aos seus homens úteis,
sobre quem nenhuma flor se debruça
a quem perdeu seu amor
e olha triste as mãos alheias, juntas
a quem não sabe como chorar
e lamenta
e se entrega
e morre.
Feliz natal.

PAIXÃO

Não quero o perfume de olhares
e os carinhos sussurrados.
Quero as sombras de unhas e dentes
e a fome dos noturnos
desenhando profundamente
laços, lanhuras, beijos
em fragor e perdição.
Quero o feroz desfazer-se em gemidos
a fragância da entrega,
os abismos de quem,
perdido em espinhos e sedas,
une pedaços como náufragos
até aportar como os amantes
no leito cansado dos dementes.
Saramar


Imagem: Kevin Rolly

EU, QUE TANTO TE AMEI


Não te amo mais.
Que saibam todos os que acreditaram.

Arei cantos e cantei
Malsinada vida de amar
e amei.

Eu te amei.
Os cantos e as flores
imaginava envolvendo
meu amor,
a cada dia maior
a um novo dia, novo.
Eu te amei.

A um canto, exangue,
mudo
em pranto
morre o amor

eu
que tanto te amei
morro
(por enquanto).

Saramar

Imagem: Yuri Bonder

INÚTIL ENTREGA




Quanto de minha alma te entreguei,
quanto de riso e sonhos...
quantos mares atravessei
para me entregar, tua...
Depois que se quebrou o rumo
e me dobraste
e me curvei
ao vento de tua ausência
o que restou,
senão minha alma nua?


Saramar

NOITE


Faltam-me os versos
e rasgo, toda noite,
os pulsos,
na fome de agarrá-los e
passam por mim em irônica fuga.
Desta dor, só eu sei.
Dentro da mudez, já perpétua,
rasgo os pulsos, mordo a língua
e nem um grito
ou algum gemido
rompem a página fria deste silêncio.