RÉQUIEM



Na festa vermelha dos sentidos,
verto o sangue do amor, incômoda utopia.

Dobro o corpo e me entrego,
sem remorso,
à féerica farsa dos tristes,
de quem ousou ter esperança.

Sobre a ilusão, enfim desfeita,
de fados,
de flores,
do amante em madrugadas
de íntimo e sereno desfalecer,
pousa a névoa do esquecimento.

Verto o sangue, sangro o seio.
Se pudesse secar o pranto,
seria suave a inelutável dor
pelo meu sonho de amor,
enfim morto.
Saramar

VEM, DOCE AMADO


"Por que me descobriste no abandono
Com que tortura me arrancaste um beijo".
Chico Buarque


Vem, toca minha mão
e a noite se esvai
em outros tons,
estrelas que caem
aqui do lado
e iluminam como fogo,
o fogo de tuas mãos.

Vem, cobre-me o peito de ais
e um vento perturba a madrugada,
o doce tormento de quem quer
ter em si, o mundo
e a ele se entregar
como me entrego a ti.

Vem, doce amado
e leva-me do profundo sono
à aurora aberta dos teus beijos.

Saramar

(DES) LAMENTO


Para que se lamentar?
Toda história de amor vai embora
depois de um tempo,
cansada de ser sempre no mesmo lugar.
Toda história de amor precisa de outro ar,
espinhos novos, outras nuvens que colher.
Trançam no ar enredos iguais e outros
seres encenam seus quadros e vagueiam
nos entreatos, borboletas sem jardim.
Não vamos chorar, não mais
que lágrima só se for de amor
e ainda assim,
escava vales no peito
e reparte a sombra.
Vamos abrir os olhos e passeá-los,
sem molduras, sem medos.
Vamos vaguear entre histórias de amor
e, quem sabe, assim,
um clown de face manchada,
um acendedor de fogos, sem alarme,
sem sapatos, desenquadrado,
impeça nossos olhos de fugir,
mas não de se incendiar,
em luz e fogo de outra história de amor.

Saramar

Imagem: Jacob Lawrence

DO AMOR DE QUE SE QUER MORRER

Amor, amor,
inventor da vida e de todos os tormentos,
permita-me o sereno tombar,
que já não posso mais, qual flor insípida,
lançar-me ao vento dos alheios desejos.
Se não a liberdade, dá-me a surpresa,
o que ainda não posso.
Dá-me a rota da sina de morrer,
se o que queres de mim,
oh! irônico deus,
é esse hei de ser, para sempre imperfeito,
que mesmo o erro há de ter sentido.
Amor, gélido casulo, que me recusa as asas,
solta-me de ti,
anoitece-te,
mata-me.
Saramar


Imagem: Greg Christman

AUSÊNCIA


É certo,
entreguei-me à loucura
e ainda busquei a razão,
como se razão houvesse
para o desamparo dos meus olhos
sempre vazios,
a ausência e os vastos horizontes
vazios.

É certo que tentei
refazer meus caminhos,
fechando os olhos,
a janela de mirar o calor do dia,
a imagem,
sua vinda, enfim.

No entanto, havia sempre,
(estranha tortura)
sua ternura dentro meus olhos,
meus olhos que sabem

como está longe de mim.
Saramar

Imagem: Cartro Pedra

PARALELAS


Imaginaste o som do sol
em canto, se cantar soubesse.
Imaginaste sombras de sementes
e o amor, se assim nascesse,
flor, fruto de esperança ou sangue.

Imaginaste nascimento e morte
em orgasmos ou risos, possíveis.

Imaginaste tu e eu
na dança desmemoriada dos felizes.

Imaginei te amar somente
e o vão das horas, o chão.
Nenhum desvario da carne,
ou corte de suicídio.
Só calma.

Quase nos tocamos,
no cansaço de ser o que somos.

Depois de tudo passado,
penso no que não te mostrei,
o denso mar que há em mim
e que poderia ter mostrado.

Saramar

Imagem: Douglas

ESPERA


Eu ando louca de saudade.
invento tua presença,
escrevo teu nome nos muros
e aviso as flores do impossível viajante
vindo do fundo do tempo.
É longa a estrada,
desfeita de espera, os sinais caídos
e a vinda que nunca se completa.

que sei eu das pedras e dos pés feridos,
se ocupada vivo, preparando sua chegada?

Saramar

Imagem: J. C. Thilman

AO SOL


"Não sei quais teus pensamentos agora.
Os meus? São teus."
(De um poeta que finge não ser).



Eu, que lhe entreguei tantas noites,
retomo a mudez da solidão,
os olhos de nada ver,
uma névoa, um recorte na fotografia
do que poderia ter sido.
Não sem dor, abrem-se a manhã e a clara certeza:
os sonhos são noturnos exercícios de acreditar.
O dia é outra história,
a ilusão não se acomoda em sol.
Ainda assim, meu amor, como eu queria
andar de mãos dadas ao meio dia.
Saramar

Imagem: Dagmar Zupan