PEDIDO


Vem, ano novo
vem me fazer mais feliz,
vem trazer meus amores,
vem arrancar esses trapos
e livrar meu corpo das
antigas dores.
Traz quem me ama com
a champanhe e os beijos.
Preciso de ambos para
inebriar minha vida e
aquecer meu sangue.
Vem, ano novo
desmanchar minhas vãs
vaidades e livrar-me
das tolices.
Deixa alguns sonhos, porém.
Preciso deles para contemplar
a vida e seguir feliz.
Vem, ano novo
desperta minha alma
para o novo, para o que chega.
Torna melhor minha alma,
preciso dela para olhar
à minha volta e
enxergar os outros.
Vem, ano novo
fortalece meu corpo,
adorna-o com os desejos
em olhos que não são meus,
preciso deles para ser feliz.
Vem, ano novo.
Saramar

O RIO E A VIDA


A vida é um rio caudaloso com pedras soltas,
pedras presas, curvas e reentrâncias.
Como o rio, aprendemos a saltar obstáculos,
contornar acidentes e nos espraiar nos
terrenos plácidos da tranquilidade.
Há momentos de queda abrupta em que
as águas se despejam com
como enfrentamos quedas que
nos machucam por dentro e por fora.
E vamos indo. Como o rio, vamos indo.
Por vezes, invadindo as margens,
derrubando construções antigas,
revolvendo raízes apodrecidas
para renovar a terra e a vida.
Indo, indo até nos diluírmos
no mar imensurável do cosmo.
Saramar

PRESENTE


O amor é um presente de natal.
Chega embrulhado com o papel vermelho
da paixão e os laços da sedução,
dentro de uma caixa, adornada com
palavras de carinho, carícias,
beijos inebriantes.
Aos poucos, vamos desembrulhando.
E o que surge por baixo de todas os
prazeres pode ser uma história de
inefáveis delícias ou um conto de terror.
Um mar de contentamento
ou de lágrimas.
Saramar

FELIZ NATAL

MARAVILHA


Maravilha
Ilha de luz
Quero tua cor mulata
A tua verde mata
Os teus mares azuis
Maravilha
Também quero o teu bagaço
A força do teu braço
O afago dos teus calos
Quero teus regalos
Encharcados de suor
Antilha
Ilha de amor
Jura que a felicidade
É mais que uma vontade
É mais que uma quimera
Ai, eu quero uma lembrança
Eu quero uma esperança
A tua primavera
Ai, eu quero um teu pedaço
Entorna o teu melaço
Sobre a minha terra.
Chico Buarque

FESTA


Busquem nos becos, os bêbados adormecidos.
Desatem os loucos de suas mordaças sanitárias.
Abracem e tragam no colo as putas das esquinas noturnas.
Troquem as roupas brancas e frias dos doentes nos hospitais.
Dêem o braço para os homossexuais enganados, amantes maltratados.
Façam um ninho de flores e nele transportem as crianças das ruas.
Tirem dos asilos os velhos abandonados, famintos e maltratados.
Peguem nas mãos os travestis tristes e borrados sob a chuva da ignorância.
Procurem as bailarinas dos cabarés pobres com uma túnica de compaixão.
Beijem as mãos e conduzam as mulheres feias, melancólicas, desamadas.
Busquem os solitários, os presos em seus terrores, os faroleiros.
Resgatem da escuridão os que sofrem por amor e choram sozinhos.
Encontrem as viúvas e as mães que perderam seus filhos.
Retirem da guerra os soldados, os rotos, saudosos, sozinhos.
Venham com as mulheres solitárias, sozinhas ou não.
Busquem os pecadores, os sem juízo, os amantes clandestinos
Carreguem em seus braços os cães abandonados
E os cavalos cansados do trabalho.
Vamos juntos à festa. É Natal!
Jesus renasce e nos chama para a festa do amor,
único presente que Ele almeja ganhar
para entregar novamente a nós, seus frágeis filhos.

Saramar

VIDA E POESIA


A lua projetava o seu perfil azul
Sobre os velhos arabescos das flores calmas
A pequena varanda era como o ninho futuro
E as ramadas escorriam gotas que não havia.
Na rua ignorada anjos brincavam de roda...
Ninguém sabia, mas nós estávamos ali.
Só os perfumes teciam a renda da tristeza
Porque as corolas eram alegres como frutos
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores
Eu me pus a sonhar o poema da hora.
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga
Talvez ao pressentir na carne misteriosa
A germinação estranha do meu indizível apelo
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada.
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco
E marulhar entre os teus seios como uma onda
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias
De que me tivesses possuído antes do amor.
Vinícius de Moraes

ORAÇÃO DE NATAL


Menino-Deus,
Eis-me aqui em sua manjedoura.
Olha para sua filha, ouve minha prece.
Criança abençoada, peço por outras crianças.
Menino Jesus, no teu aniversário, refaz o
milagre da distribuição do pão do amor.
Porque os homens se esquecem que também
são capazes de realizar esse milagre que ensinaste.
Reaviva, Menino, no coração dos homens
a compaixão e o amor para que eles cuidem
das crianças do mundo,
que sejam alimentadas,
que não sofram nem chorem.
Menino Jesus, toma em tuas mãos abençadas,
as crianças. Livra-as da guerra, da fome, da morte
antecipada, da morte em vida e da dor que não podem
compreender nem deveriam sentir.
Menino, que és, coloca no rosto das outras
crianças, o sorriso, o amor e a segurança.
E, em suas bocas, a comida e a irreverência.
Obrigada, Menino-Deus.
Saramar
Ilustração: "Crianças", de Maria Celeste Carvalho Neves

CARTÃO DE NATAL


Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.
João Cabral de Melo Neto

RETORNO


Você veio, amor e me encontrou
tranquila, as dores trancadas em
desvãos esquecidos e as pernas
cansadas de andar à procura
de amores perdidos e inúteis
porque não eram meus.
Veio e trouxe nos lábios nomes
marcados de paixão e no corpo,
mãos, infinitas mãos
que não são minhas.
Chegou usando subterfúgios
para me roubar novamente a paz
e me levar por escadas,
degraus que elevam meus sentidos
naquela ciranda de desejos,
beijos interrogando meu corpo
que, ainda sendo meu, inicia a
viagem para voltar a ser seu.
Saramar

AUSÊNCIA


Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
Sophia de Mello Breyner Andresen